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13/03/2019

Texto

Iasmim Martins

Dia Internacional da Mulher:
Pondo o Dedo na Ferida

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Imagem: Reprodução da internet

Dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1975, é comemorado desde o século passado. No Brasil, é muito comum associar a data ao dia em que cerca de 130 operárias morreram queimadas durante uma greve em Nova York, no dia 25 de março de 1911, na Triangle Shirtwaist Company. Mas a data foi motivada por diversos movimentos femininos de luta por direitos, mormente direitos trabalhistas, e depois por direito ao voto (sufrágio), não só nos Estados Unidos, mas em vários lugares da Europa.

Apesar de tudo isso – e dos muitos direitos conquistados pelas mulheres – ainda há muita desigualdade (falta de equidade) no mundo do trabalho, na administração do lar e tarefas domésticas, na política, no mundo acadêmico e na sociedade como um todo, entre os gêneros (masculino e feminino). Torna-se necessário, então, não só comemorar ou mencionar esse dia; o melhor mesmo seria enfiar o dedo na ferida, uma vez que é para isso que essa data existe. Afinal, não fossem as mulheres (elas/nós) escancarando suas feridas, como teríamos chegado até aqui?!

Se pararmos para pensar, todos saíram de dentro de uma mulher, olha que louco. Parece uma coisa um tanto óbvia, mas não costumamos refletir sobre isso. Como pode alguém que dependeu também e principalmente de uma mulher para existir ter uma relação tão insensível às mulheres?! Querendo ou não, o absurdo da existência humana se dá a partir e através do corpo de alguma mulher, todos precisaram dos corpos femininos para vir a existir. Esse mesmo corpo que sofre com a violência obstétrica (praticada pela medicina patriarcal), com a amamentação, com os pesares todos para gerar e manter o filho vivo, tão romantizado na experiência (nem tão romântica assim) da maternidade, é visto, por outra perspectiva, como propriedade, como ameaça, como um caminho para subjugar, para ferir, como possibilidade de domínio.

Mais uma vez precisamos dizer o óbvio. Desde o passado mais longínquo, o feminino, o corpo feminino, e a mulher em si foram tomados como ameaça à hegemonia masculina, como algo que deveria ser controlado e subjugado. Sobretudo na cultura judaico-cristã e na nossa sociedade ainda escravocrata. Nesse contexto, o ódio contra o feminino sempre foi propagado, o ódio contra o que é incontrolável no feminino. Deveríamos admitir (de uma vez por todas) que todo sofrimento e a injustiça (social) que as mulheres vêm sofrendo, são consequências diretas da cultura patriarcal, machista e misógina, que é propagada até mesmo por muitas mulheres.

Não adianta culpabilizar somente o indivíduo que, no auge dessa civilização machista, estupra, espanca. Não adianta culpabilizar o caráter ou alegar problemas psíquicos, dado que isso tudo é fruto da educação patriarcal, da permissividade que sempre se teve com relação ao masculino e seus abusos, da ideia sempre forjada que se teve do que era ser mulher, etc. Tema já bastante discutido por teóricas/os, poetas e filósofas/os, desde o século XX (Simone de Beauvoir, Marcuse, Foucault, Angela Davis, Nancy Fraser, Judith Butler, etc), dado que gênero é uma construção. Por esse motivo, a própria masculinidade tóxica, é construída socialmente, a própria ideia do que é ser mulher ou ser homem, é construída.  

O número de casos de violência contra a mulher (física, psíquica ou econômica) vem crescendo; o feminicídio e a violência física são recorrentes, principalmente na América Latina; os números também já são alarmantes no Brasil. E nada tem sido feito efetivamente para que esses dados se modifiquem. Pelo contrário, com a onda reacionária que estamos vivendo no país e no mundo, isso só vem piorando. O Estado não garante a segurança das mulheres como deveria, nem a punição correta dos criminosos, muito menos promove debates e uma educação que elucide essas questões.

Um dos principais líderes do país é misógino, se fazendo passar por “politicamente incorreto”, dizendo e fazendo as maiores atrocidades, principalmente contra as mulheres, e tudo isso ainda é motivo de riso. Não se esqueçam de que ele homenageou na câmara um torturador de mulheres e crianças, que havia torturado a então presidente do país durante a ditadura. A própria reforma da previdência em pauta prejudica principalmente as mulheres, ainda mais as mulheres que trabalham no campo. Além disso, ele nomeou 20 ministros e apenas 2 ministras e ainda faz piada com isso, etc.

Bom, como vocês leitores devem saber, essa estrutura machista que está sendo debatida no presente texto, ainda é negada por muitos, por que será?! Ela vai desde o modo como educamos nossas meninas, as desencorajamos, ensinamos a se comportar de tal ou qual maneira; reprimimos sua sexualidade, damos brinquedos que geralmente têm a ver com o preparo para a maternidade ou o cuidado com o lar (Vide Simone de Beauvoir, O segundo sexo), passando pela maneira como os meninos são educados e encorajados, os contos de fada nada “empoderadores” lidos para as meninas, a ilusão do casamento e da maternidade como destino e salvação da mulher, até as piadinhas que nós suportamos/toleramos no dia-a-dia com relação às mulheres, as cantadas “inofensivas” na rua, os comentários machistas na família ou dos amigos, a sogra que persegue a nora, as mulheres que se odeiam (pois isso faz parte da lógica do patriarcado), a exposição da vida íntima e sexual por parte de muitos companheiros, seja em rodas de conversa, seja em redes sociais, os xingamentos no trânsito, a desigualdade econômica, a desigualdade no mercado de trabalho, a sobrecarga com as tarefas domésticas, a culpabilização das vítimas de violência doméstica ou violência sexual, até a própria violência física em si e o feminicídio. Isso em todas as camadas econômicas e sociais.  E ainda há quem relativize tudo isso e muito. Parece tão difícil fazer o esforço de pensar: se aquela mulher não conseguiu se libertar do marido opressor, qual será o real motivo? Ou até mesmo, o que faz com que tantos maridos/companheiros sejam opressores? Ou ainda, será que eu tenho medo de sair na rua tal como uma mulher tem? Preciso de um vagão no metrô exclusivamente para homens, aliás, porque precisa existir um só para elas?! Se uma mulher tem dificuldades para dirigir, ao invés de debochar, não seria mais válido pensar que talvez ela nunca tenha sido incentivada e encorajada a tal coisa, assim como um homem geralmente é. Tudo isso é bastante óbvio, lugar comum, mas parece ser um esforço (básico) de pensamento que várias pessoas não se dão ao trabalho de realizar.

São tantas atrocidades descabidas que eu poderia comentar, é tanto nó na garganta. No entanto, falaremos agora sobre as coisas mais sutis, aquelas que são mais facilmente naturalizadas e muitas vezes passam despercebidas. Comecemos pela carga mental, questão tão sútil e subjetiva. A carga mental é todo o trabalho invisível das mulheres, isto é, tudo que é pensado, planejado e calculado pelas mulheres cotidianamente, diariamente. Mesmo as mulheres que conseguem dividir as tarefas com os companheiros, geralmente não conseguem dividir a carga mental. Explicando de outra maneira: toda vez que uma mulher preocupa-se com a lista de compras, com o fato de ter acabado a água, com a ração dos animais de estimação que vai acabar amanhã, com pesquisar a escola em que os filhos vão estudar, com a empregada que precisa ser paga (para as que possuem o privilégio de contar com o trabalho de outra mulher, a empregada doméstica), com a roupa de cama que precisa ser comprada ou trocada, enfim, com a administração do lar e da vida de maneira geral, trata-se da carga mental, do trabalho invisível, sem nenhum reconhecimento e quase nenhuma possibilidade de divisão. Gerenciar, dar ordens, ter que pedir o tempo todo para o companheiro fazer alguma coisa ou relembrá-lo infinitamente de fazer, é um trabalho que muitos desconhecem ou não admitem, porque toca diretamente no privilégio masculino. Se sua companheira precisou te pedir ou te lembrar de lavar a louça, de que as compras precisavam ser feitas, de que a diarista não tinha recebido o pagamento, de que acabou a ração do cachorro ou de que a conta de luz já estava atrasada, se ela precisou se arrumar para ir ao trabalho, mas antes disso se sentiu tão incomodada com a sua bagunça que saiu catando tudo pela casa, se ela volta pra casa planejando o jantar de vocês e você não, se ela que planeja todas as viagens de vocês, se ela que se preocupa se você vai com a roupa amarrotada para o trabalho ou com comprar suas roupas, entre outras coisas, há algo de errado. No caso das mulheres que trabalham como domésticas, esse trabalho é dobrado, pois toda a empreitada de cuidar do lar alheio e do seu próprio, é ainda mais pesada (lembrando que dependendo da classe social, a carga feminina pode ser muito maior).

A consequência disso tudo é a sobrecarga física e mental feminina, que acarreta diversos prejuízos, inclusive em sua carreira profissional, como uma mulher com dupla, tripla jornada, mais a carga mental vai conseguir dedicar-se tal como um homem a sua carreira?! Eu te respondo, muitas conseguem e muito melhor, só que não podemos incorrer no argumento da meritocracia, portanto, é preciso esclarecer que as mulheres são prejudicadas de saída profissionalmente, logo, financeiramente. Com tudo isso, muitas conseguem se destacar e seguir suas carreiras, só que em diversos empregos, com a mesma titulação, o mesmo nível de estudos, as mulheres chegam a receber 64% apenas dos salários dos homens, para ocupar os mesmos cargos, sendo que muitas não chegam aos cargos de diretoria ou nem são contratadas, simplesmente pelo fato de que podem engravidar. O que ocorre ainda hoje – acredite o leitor ou não.

Se levarmos em consideração a condição das mulheres negras, periféricas, LGBTs, etc., a jornada é muito mais penosa, não me refiro apenas à jornada de trabalho, mas a própria existência. Se os corpos femininos já são alvos, muito mais são os corpos negros femininos e os corpos que não se encaixam na heteronormatividade. Muito menos oportunidades de trabalho, de gerência da sua própria vida afetiva e financeira, bem mais abusos, inclusive por parte do poder público, mais precária a vida. Aliás, é sobre a precarização da vida das mulheres, nas suas mais diversas formas, de que nós estamos fazendo o esforço de tratar desde o começo do texto.  Podemos citar também como grande exemplo disso, as mulheres trans (ainda que seja uma questão polêmica dentro do feminismo), na prática, a violência contra essas mulheres é ainda mais absurda.

Para não tomar mais o tempo do leitor, gostaria de fazer alguns apontamos sobre minha própria experiência. Segundo uma reportagem, faz 25 anos que as disparidades profissionais entre homens e mulheres não registram um declínio real.  A respeito da minha área: a quantidade de mulheres trabalhando em vários departamentos das universidades é menor do que a de homens, o meio acadêmico ainda é muito masculino, sobretudo no campo da Filosofia; acrescente a isso o termo “misógino”. O currículo lattes torna-se uma exigência de produtividade ainda mais cruel, considerada a dupla jornada e a carga mental feminina. Então, me pergunto: que chances nós temos?! Mas conseguimos, com muito sangue nos olhos e tendo que provar muita coisa, tendo que ter o currículo até melhor do que o de um homem para conseguir a vaga. Apesar de termos conseguido ter os nossos textos lidos por eles, passamos a maior parte do tempo tendo nossos trabalhos, dissertações, artigos, teses, corrigidos e julgados somente por eles, tendo nossas bancas formadas por eles, tendo que fazer concursos com bancas formadas exclusivamente por homens, tendo o texto das filósofas ainda pouco lidos ou respeitados. Basicamente, tendo que comprovar nossa capacidade o tempo todo, diante de uma concorrência desleal e de uma visão de mundo e de trabalho muito masculina. Sem contar quando somos interrompidas por eles, na apresentação de nossas ideias, ou tentam nos explicar (de maneira cordial) algo que nós já entendemos faz tempo: (mansplaining e manterrupting), termos utilizados pelo feminismo.

Ademais, para as mulheres é ainda mais difícil atender as exigências acadêmicas, pela sua jornada, sua história de vida, principalmente se for uma professora lutando para sobreviver em um país nada digno para tal área, precisando trabalhar em diversos empregos diferentes, com grande carga horária de aulas, para ter um salário minimamente digno. Como chegará a ser professora universitária?! O mundo acadêmico e o mundo como um todo sempre foi e permanece sendo muito mais condescendente com os homens, do que com as mulheres. E muitos desses intelectuais não se interessam por debater seriamente o tema da equidade de gênero.  Enfim, intrinsecamente, seja qual decisão a mulher for tomar, ela sabe que, no fundo, precisará contar consigo mesma. E, no máximo, com suas companheiras de dor. Seja lá como for, o dia 8 de março, bem como todos os outros dias, nos convoca a mexer nas peças desse velho tabuleiro, doa a quem doer, retire os privilégios de quem os possui, combata o que deve ser combatido. É um dia tão paradoxal, de homenagens, protestos, reportagens, presentes, que acaba perdendo o sentido mais íntimo, o sentido da luta feminina, que é diária, que não cessará nunca, talvez. Mas que transformou e tem transformado o mundo. Nada nos foi dado, tudo é fruto de conquistas, que pode ter tido a ajuda e o acolhimento masculino (em alguns casos), mas sempre muito mais nos foi tirado do que nos foi dado, inclusive a própria vida, o direito de existir e se saber mulher. O direito de ter uma relação amorosa digna, sem relacionamentos abusivos (gaslighting), de sair na rua sem ter medo, de ter um pai ou padrasto ou conhecido que não te estupre, de não ter nojo e não recriminar o próprio corpo, a sexualidade, a própria menstruação, o direito de não viver em cárcere privado, de estudar, de votar, de trabalhar, de se vestir como quiser, de não ser agredida ou morta pelo companheiro, de não passar humilhação na polícia depois de sofrer violência, de não ser culpabilizada e desacreditada pelo mundo, de não ser mero objeto sexual ou de subserviência, de decidir sobre o próprio corpo e até de decidir abortar ou de amar outra mulher. O direito de ser!! O direito de pensar fora da caixa e combater veementemente o patriarcado, o que libertará também, milhares de homens. Talvez a gente devesse retornar um pouco as nossas raízes pagãs, em que o feminino, em sua construção estética, é compreendido e desenhado de outras formas. Esse texto é pelo nó na garganta, por todas as mulheres (negras, indígenas, brancas, trans, etc) e por Marielle Franco (mulher negra, favelada e bissexual, como ela gostava de se apresentar), vereadora na qual votei (uma das mais votadas), e que foi assassinada a tiros, dia 14 de março de 2018, em pleno Centro do Rio de Janeiro, numa noite comum. “Não seremos interrompidas”!